quarta-feira, 24 de abril de 2013

COTIDIANO

 Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã,
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã
(Chico Buarque, in “Cotidiano”) 

Em minha tela de 15 polegadas, o mundo se exibe. Morte, desabamento, trânsito, calor insuportável. Minha tela é a boca do inferno. Estou no Centro de São Paulo, na minha sala de trabalho. Dezessete pessoas em suas respectivas baias. Meu computador tem dois monitores. Um fundo de tela que é um quadro do Millôr. Genial esse desenho: o homem com seu cachorro. Vez ou outra olhares de esguelha buscam captar movimentos. Não estou nem aí. Uma parada para almoço. Todos na rua, firmo o caminho de sempre. Escolho o trivial: salada, peixe, arroz integral e pastel. Preciso eliminar a fritura.
 
Já te falei que morro de medo de dormir. É sério! Sempre acho que vou morrer dormindo. Que terei um enfarto tão fulminante que nem chego a acordar. E se tiver um AVC? Que horror.

Sinto dor de cabeça. Sempre. Isso aumenta meu receio de ir para a cama. Preciso com certeza eliminar o pastel de queijo de meu cardápio.

Retorno sem pressa. Passo pelo café, tomo um expresso. Lá eles servem um pequeno chocolate para acompanhar. Com a gripe, prejudicada a apreciação daquela bebida. Vamos ao mérito.

Doem meus ombros, minhas costas. Tenho inalação para fazer. Vou deixar para depois.

Retorno à minha sala. Todos com ar de concentração. Não estou nem aí. O único ar que me incomoda é o ar condicionado. Há ares do bem, outros do mal. Esse certamente é do mal. Esfria minha cabeça, ataca a sinusite, que meu médico afirma ser crônica. Crônica é o que escrevo.

A gripe associada com a dor de cabeça é tiro na testa, ou melhor, em um dos lados de minha cabeça, geralmente a esquerda. Minha dor é de esquerda. Caramba, como dói! Tenho certeza que a culpa é do pastel.

Abro arquivos, recomponho seus textos, organizo o material. Reviso as notas, entro na minha conta do banco só isso? , acerto o que tem para acertar, falo ao telefone, são dúvidas de pauta, agora ligação de casa tá certo, pode fazer , envio comandos de impressão, limpo a caixa de entrada, mando tudo para a lixeira: subpastas, arquivos mortos, gente ferida, sentimentos frívolos, risadas debochadas, cara feia e fechada, papel de bala, fracassos, courier new corpo 10, a fila que não anda, cafezinho com leite, suspiros e gemidos. Faço tudo isso quase que automaticamente, mas acontece que existe o “quase” e sempre o “quase” faz a diferença e, neste caso, uma grande diferença.

Quase levanto e vou ao toalete, quase escovo meus dentes, quase olho para o espelho pensando que preciso cuidar melhor de minha pele, quase olho pela janela o corredor tomado de ônibus parados, e quase penso no sufoco do pessoal que está parado nesse congestionamento. E, finalmente, quando quase retorno junto ao meu computador, quase tenho absoluta certeza de que o maldito pastel de queijo não é mesmo uma boa pedida.

No mais, tudo bem, graças a Deus, vamos levando.

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