segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Retrato de artista enquanto coisa

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que
olha o relógio, que
compra pão às 6 horas da tarde, que
vai lá fora, que
aponta lápis, que
vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

-Manoel de Barros-

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Dispersão

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(trecho de Dispersão, de Mário de Sá-Carneiro)

domingo, 18 de julho de 2010

Sem inspiração

Saí correndo e fui parar num mato sem cachorro. Lá encontrei a turma do deixa disso. Percebi que era uma torcida organizada e voltei atrás.
Conheci o mar em seus raros momentos de ira.
Perguntei às estrelas onde poderia tomar Ovomaltine e elas me guiaram até à oficina de pneus carecas.
Subi e desci morros, pedalei na bike velha do quintal, resisti a furacões – qual é, aqui não tem nada disso, não –, bem, troquei o “r” pelo “d” e fui em frente caminhando e cantando.
Vieram os dois. Sim, eles sempre estiveram aqui. Pequenos anciões, habitam os morros dos ventos uivantes, são lobos do mar.
Creio que é só.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Recado

Células Canceladas wrote:

Finalzinho de tarde. Ligo o som, ponho uma música que me tranquilize... O que poderia ser? Algo renascentista, talvez um concerto de cravo, ou quem sabe Dave Brubeck tocando algum standard. Sento-me num sofá que se encontra na varanda de casa. Estiro minhas pernas, coloco um travesseiro em meu colo, você se deita, repousando sua cabeça no travesseiro. Pega um livro e começa a ler. Eu também tenho um livro. Abro na página marcada e retomo minha leitura. Há um burburinho de bichinhos que surgem com o lusco-fusco. Vejo você cochilar com o livro aberto no peito. Pego o livro e coloco ao lado.
Surgem as primeiras estrelas, Vésper, a mais brilhante... danada essa estrela!!! Fecho meu livro, passo minha mão em seus cabelos, olho para o horizonte. Paz, muita paz.
Essa imagem traduz meu conceito de felicidade.
Seria sonhar demais?
Beijos

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Arrigo

O que penso? Relacionamentos virtuais, hã hã, Internet?
Bem, nossas vidas ficaram tão devassadas, não? Pela cam vejo todos, eles me veem, gera-se certa intimidade por estarmos sozinhos, frente a frente, mas tudo fake.

[Ele entrou de paletó, com uma gravata extravagante (ou era a camisa?). As letras contundentes do compositor caíram como uma luva para sua voz rouca e rasgada. Piano e violão completavam o clima suburbano das canções.]

Por que fake?
Porque somos fingidores, representamos outros papéis: marginais bondosos, voyeurs, santos celestiais calientes, demônios em forma de anjos, mágicos transformistas, alquimistas medievais, prostitutos telepáticos, observadores contextuais, palhaços assassinos, animais enjaulados. Somos o que não somos durante o dia.

[Faltou-lhe a capa. Onde foi parar? Fiquei pensando enquanto cantava: será que ele anda pelas vielas escuras e estreitas de São Paulo? Ele é de Londrina, creio, mas é o sujeito mais paulistano que já conheci. Palmas, assobios, a casa de espetáculo — um pequeno e aconchegante bar — está lotada. Estou estirada num sofá, no mezanino, tomando uma taça de vinho. Humm, gostei.]

Se pode ser uma armadilha?
Ah, mas armadilhas são armadas em toda parte. Mas o que devemos questionar é por que queremos cair nessas armadilhas.

[Agora era eu que estava de capa. Não era bege como a dele, mas preta. Sou meio gótica, gosto do preto. Entrei no beco. Uma minguada luz teimava em querer iluminar o portão de uma casa velha e descascada. Andava olhando para meus pés. Gosto de vê-los caminhar. Na minha mão, uma moeda de um real. Brincava comigo mesma de cara ou coroa. Mas essa moeda não tem coroa. Tudo bem, tanto faz. Lembrei do Lira Paulistana. A moeda caiu de minha mão e rolou para dentro do bueiro. Foda-se.]

Se atitudes, hã hã, solitárias, contribuem, hã, busca?
Bem, não diria exatamente atitudes, porque este é um termo que expressa ação, não conformismo. Pessoas assim são determinadas e agem por motivação. Na internet, por outro lado, principalmente em sites de relacionamentos interpessoais, as pessoas desejam alentar seus estados de espírito dialogando com outras que possam lhes trazer alguma espécie de compensação, seja intelectual, emocional, ou mesmo para satisfação de suas necessidades mais básicas, como as sexuais, por exemplo.
Se isso é bom ou ruim?
Não acho que devamos polarizar a questão para um lado ou outro. Isso, é óbvio, vai depender sempre de cada internauta.
Obrigada, também fico agradecida por terem me convidado para debater esse assunto tão instigante. Boa noite.

[Virei a esquina, dei de cara com ele. Mesmo cabelo, porém um pouco grisalho, seu rosto afirmando que a fila andara e que o tempo passou.
Oi, tudo bem? Não me conhece, mas eu cantava naquele grupo etc.
Claro! Que legal, gostava muito!
Bem, só queria te dar um abraço, gostei do show e principalmente de conhecê-lo pessoalmente (gosto muito de você).
Voltei para casa a pé, meio sem graça... Bancando a tiete, besta...]

quinta-feira, 25 de março de 2010

amigo virtual

Início de madrugada. Tempo quente, eu ignorando os tantos livros à minha cabeceira, prontos para serem devorados. Meu notebook, no fundo de meu quarto, me tentando, pedindo para que eu toque em seu teclado morno, macio, clean, e me oferecendo a oportunidade de me conduzir a um mundo de novos avatares. Persona grego do passado, agora avatares. Mistérios venusianos, seriais killers, infortúnio dos miseráveis, piadas infames e de mal gosto, sexo adoidado.
- Mas o que você procurava?
- Por incrível que pareça pessoas reais. Gente que dialogue, fale de seu mundo interior, de suas experiências, gente que dê risada, muita risada. Eu adoro rir.
- É, você ri até demais. E encontrou?
- Tive sorte. Talvez ele até tivesse entrado com a intenção de fazer um sexo virtual pelo avançado da hora. Mas logo percebeu que meu negócio era mesmo jogar conversa fora.
- Ahahah, e jogaram?
- Nossa, teclávamos compulsivamente. Demos a volta no circuito dos assuntos gratuitos e banais, entramos no túnel da cultura geral e ele até esbanjou seus conhecimentos sobre cinema. E eu com Miles Davis na veia, nem percebi as horas passarem.
- Uau!
- Uau, nada. De repente, surgiu um pernilongo, um monstro sanguinário, prestes a devorá-lo.
- Hãhã, exagerada...
- Não, não é exagero, não. Era de fato um monstro virtual, sei lá pseudorreal, ficção em 3D, enorme, patas peludas, longas, com asas que disparavam em direção à cabeça, já que, com certeza, ele era um devorador de cérebros.
- Tá bom, agora o bicho também devorava gente.
- Gente, não, cérebro. Era o Cannibbal transfigurado em pernilongo.
Bem, a coisa, então, começou a ficar fora de controle. Sabe, quando minhas mãos começam a teclar, elas vão pegando no tranco e em pouco tempo começam a disparar. Se eu pego uma ladeira, então, jogo o ponto morto e vou embora, não paro mais. Fiquei desesperada. O pernilongo soltava gargalhadas em volta dele e ele se debatendo e eu sem conseguir brecar minhas mãos. Disparei nos mais variados temas: do cinema nacional ao Cahier du Cinemà, Pasolini, Kurosawa, a nova safra de cineastas, Oscar, Tarantino - ele odeia filme árabe -, Paulo Leminski, Drummod, Fernando Pessoa, receitas para jantares informais, lanches matinais, a carne e a gordura, o poder atordoador da alface, John Lennon, Teatro de Arena, ditadura, coringão, CQC, Pânico na TV e outras merdas televisivas, a insalubridade paulistana, as nano paixões virtuais.
- Ôôô, até que horas nesse papo furado?
- Até às cinco. Foi quando o pernilongo sumiu.
- E aí, como ficou?
- Não ficou nada. Ele se despediu, eu me despedi. Tchau.
- Tchau e acabou?
- Sim, tchau e fim.
- Vamos pedir a saideira?
- A saideira.
Enchemos nossos copos. Olhares perdidos no vazio.

Em tempo: Fui à apresentação de Aldo López-Gavilan com a Jazz Sinfônica no Auditório Ibirapuera. O som desse pianista incendiou meu coração. Foi difícil dar a partida no carro e sair.

sábado, 20 de fevereiro de 2010


Bem, o que vocês estão vendo é a foto da minha perna. Meu platô tibial quis usar piercing, então resolvi colocar logo dois para que ele não me venha com exigências posteriores. Era um passeio no Ibira: domingão, dia ensolarado, minha cachorra suplicando por umas voltinhas para encontrar com outros cães de sua raça. Diga-se de passagem que ela é uma cadela da melhor estirpe dos grandes e insuperáveis SRD. É isso aí, eu AMOELA.
Como ia dizendo, a vadiagem começou a pesar na minha consciência, então resolvi sair para dar uma volta no parque. E ando, ando, todo mundo brincando, jogando bola, tomando sorvete, um verdadeiro "Domingo no parque" do Gil, a roda e o sorvete, o sorvete e a rosa, olha a faca! Mas não era uma faca era outro cachorro, um destrambelhado que corria feito louco atrás de outro, não me viu e pumba! Eu caída no chão, igual à música, só que não morri. Quebrei a perna, ninguém percebeu (só eu por causa da dor, mas quem acreditaria nisso...). Vamos pular os dias seguintes porque foram momentos, eu diria, aflitivos . No quinto dia, fui operada (deve haver uma explicação bíblica para isso). Vamos pular os meses seguintes porque foram meses, como dizer, também aflitivos. Houve sequelas, estou bem, ok, já consigo andar, mas ainda tenho momentos, como dizer, aflitivos. Puta que Ô pariu! Depois dessa merda toda tive trombose, engordei pra chuchu (tudo bem, já se notavam algumas proeminências antes do fatídico dia), quando tive alta, nem bem comecei a praticar natação e aiaiai "tendinopatia da pata de ganso"!!! Olhem aqui, não me irritem mais, não vou dar explicação pra ninguém! Procurem no Google para saber do que se trata...
Ontem, para concluir, fiquei estressada no serviço, o que me levou a ficar um pouco surda do ouvido direito (também não me perguntem o que uma coisa tem que ver com a outra) e, de repente, um zumbido maluco! Gente, quando entrei no carro, achei que havia uma bomba programada para explodir por causa do som! Só quando cheguei em casa é que percebi que o som vinha da própria cabeça. MEDOOO!!! Por enquanto, vou tentar relaxar e ver que nota está tocando quando faço uma concha com a mão e a coloco no ouvido. Parece que é sol. Seria essa nota solar uma mensagem do além?
Em tempo: minha debilidade auditiva não me impede de ouvir boas músicas. Vijay Iyer Trio é um bom exemplo (Historicity). Como diria o velhinho do bar, "os moço são bom"! E Chico Pinheiro, então (Chico Pinheiro & Anthony Wilson), Nicolas Krassik (Odilê Odilá), Scott Feiner (Dois Mundos). Quááá, acho que vou quebrar a outra perna e já volto...

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

O tempo

Madrugada de sábado, pensando no show da Nana Caymmi, no Sesc Pompeia. Essa mulher é incrível: conversa com o público como se estivesse em casa, bebericando, falando de sua vida e de seus irmãos. Essa cumplicidade com a plateia lhe permite cometer alguns deslizes, claro, sem comprometer o espetáculo. Nana não mede as palavras quando fala e fala com sinceridade tudo o que vem pela cabeça. Tudo bem, vou por fim a essa tietagem. Mas a verdade é uma só: Nana, quando canta, é um arraso. Saí de lá com uma sensação atordoante, não sei se por vivenciar tão profundamente as emoções de cantora e plateia, ou se por ficar uma hora e meia sentada numa cadeira dura de madeira. De qualquer forma, isso já era um motivo mais que justificável para entrar no supermercado do shopping Bourbon (que já estava fechando) e comprar - urgh - um bolo light de chocolate (gente, por favor, não tinha açúcar!).

Já me entupi de bolo.

Quem não foi quarta passada assistir ao Alessandro Bebê Kramer no Sesc Vila Mariana perdeu.
Lembro desse gaúcho quando ainda integrava o grupo "Dr.Cipó". Tenho o CD deles, gravado em 2005, com capa em 3D, que vem junto com os óculos para ver a foto. Conta com a marcante participação do Hermeto Pascoal. Bem, os óculos, eu já perdi.
As músicas de Bebê, com forte raiz no folclore gaúcho (como o chamamé, por exemplo), agregam ainda o jazz, o choro, composições eruditas. A qualidade de seu trabalho é reforçada pela presença de Guto Wirtti, contrabaixista da pesada (rááá, literalmente, ele toca baixo de pau).
Bah, tchê, tri legal!

Ah, o tempo... É que a Nana terminou o show cantando "Resposta ao tempo", de Aldir Blanc e Maurício Tapajós, que por sinal estava presente.
- Mãe, você já prestou atenção nessa letra?
- Não, fico mais ligada na música.
- Ouça então o que ela diz para o tempo!

Batidas na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho
Prá ter argumento

Mas fico sem jeito
Calado, ele ri
Ele zomba
Do quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei

Num dia azul de verão
Sinto o vento
Há fôlhas no meu coração
É o tempo

Recordo um amor que perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
Se eu notei
Pois não sabe ficar
E eu também não sei

E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos

Respondo que ele aprisiona
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
Eu desperto

E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Prá tentar reviver

No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Células canceladas

Foi um tombo do colo para o chão. Bateu a cabeça. Deve ter doído muito. Também já caí assim, só que não estava no colo de ninguém. Dirigia-me à esquina em busca de um táxi que me levasse ao auditório Ibirapuera para assistir a uma apresentação da orquestra. Tropecei, voei, dei de cara no chão. Doeu. Muito.
Ela ficou maluquinha, tadinha, desde pequenininha. Tem medo de tudo - até que agora não muito -, foge de tudo que lhe colocam na frente.
Achei interessante a explicação dele: "Ah, ela ficou desse jeito porque quando topou com o chão, algumas células foram canceladas."
As minhas também. Canceladas. Isso mesmo. Doeu demais. Voltei para casa, tremenda pancada, maquiagem sendo levada pelas lágrimas. Enxurrada de lágrimas.
Me refiz. Fui ao teatro assim mesmo: com manchas roxas e células canceladas.