quinta-feira, 25 de março de 2010

amigo virtual

Início de madrugada. Tempo quente, eu ignorando os tantos livros à minha cabeceira, prontos para serem devorados. Meu notebook, no fundo de meu quarto, me tentando, pedindo para que eu toque em seu teclado morno, macio, clean, e me oferecendo a oportunidade de me conduzir a um mundo de novos avatares. Persona grego do passado, agora avatares. Mistérios venusianos, seriais killers, infortúnio dos miseráveis, piadas infames e de mal gosto, sexo adoidado.
- Mas o que você procurava?
- Por incrível que pareça pessoas reais. Gente que dialogue, fale de seu mundo interior, de suas experiências, gente que dê risada, muita risada. Eu adoro rir.
- É, você ri até demais. E encontrou?
- Tive sorte. Talvez ele até tivesse entrado com a intenção de fazer um sexo virtual pelo avançado da hora. Mas logo percebeu que meu negócio era mesmo jogar conversa fora.
- Ahahah, e jogaram?
- Nossa, teclávamos compulsivamente. Demos a volta no circuito dos assuntos gratuitos e banais, entramos no túnel da cultura geral e ele até esbanjou seus conhecimentos sobre cinema. E eu com Miles Davis na veia, nem percebi as horas passarem.
- Uau!
- Uau, nada. De repente, surgiu um pernilongo, um monstro sanguinário, prestes a devorá-lo.
- Hãhã, exagerada...
- Não, não é exagero, não. Era de fato um monstro virtual, sei lá pseudorreal, ficção em 3D, enorme, patas peludas, longas, com asas que disparavam em direção à cabeça, já que, com certeza, ele era um devorador de cérebros.
- Tá bom, agora o bicho também devorava gente.
- Gente, não, cérebro. Era o Cannibbal transfigurado em pernilongo.
Bem, a coisa, então, começou a ficar fora de controle. Sabe, quando minhas mãos começam a teclar, elas vão pegando no tranco e em pouco tempo começam a disparar. Se eu pego uma ladeira, então, jogo o ponto morto e vou embora, não paro mais. Fiquei desesperada. O pernilongo soltava gargalhadas em volta dele e ele se debatendo e eu sem conseguir brecar minhas mãos. Disparei nos mais variados temas: do cinema nacional ao Cahier du Cinemà, Pasolini, Kurosawa, a nova safra de cineastas, Oscar, Tarantino - ele odeia filme árabe -, Paulo Leminski, Drummod, Fernando Pessoa, receitas para jantares informais, lanches matinais, a carne e a gordura, o poder atordoador da alface, John Lennon, Teatro de Arena, ditadura, coringão, CQC, Pânico na TV e outras merdas televisivas, a insalubridade paulistana, as nano paixões virtuais.
- Ôôô, até que horas nesse papo furado?
- Até às cinco. Foi quando o pernilongo sumiu.
- E aí, como ficou?
- Não ficou nada. Ele se despediu, eu me despedi. Tchau.
- Tchau e acabou?
- Sim, tchau e fim.
- Vamos pedir a saideira?
- A saideira.
Enchemos nossos copos. Olhares perdidos no vazio.

Em tempo: Fui à apresentação de Aldo López-Gavilan com a Jazz Sinfônica no Auditório Ibirapuera. O som desse pianista incendiou meu coração. Foi difícil dar a partida no carro e sair.

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